A universidade e a construção do futuro no presente.
A implementação dos Colégios Universitários (CUNIs) da Universidade Federal do
Sul da Bahia viabilizou a realização do sonho de ingresso no Ensino Superior
para estudantes cujas condições existenciais impedem o deslocamento para
universidades distantes das suas comunidades. Esse e outros fortes argumentos
foram apresentados por Danilo Urapinã Pataxó, estudante indígena do Curso de
Direito oriundo da primeira turma do CUNI-Cabrália no ano de 2014. Danilo
participou de um projeto didático organizado com a turma de estudantes que
ingressam no ano de 2020 na nossa universidade.
Ele, o nosso convidado, compartilhou suas memórias como egresso da
primeira turma do CUNI. Nós, participantes do acontecimento, compartilhamos
escutas e questões próprias da primeira turma de ingressantes no ano da
pandemia da COVID-19. Nos encontramos em uma plataforma online à maneira de quem inventa uma encruzilhada existencial para compreender de maneira mais alargada
como fazer o futuro no presente e, assim, avançarmos juntos na história.
As memórias de Danilo nos forneceram matéria prima para conhecermos em
profundidade os caminhos que cruzam a universidade e a sociedade no meio das
lutas para a construção de um mundo melhor e mais justo para todos.
Logo no seu primeiro relato, o estudante indígena aponta as principais
direções que orientam os desafios da sua presença na universidade e da presença
da universidade na construção das suas lutas pessoais e coletivas. Na conversa
com a turma do ano de 2020.2 as vozes se entrelaçam nas questões e respostas
que expandem nos tecidos das conversas e comentários: inquietações, desejos,
esperanças e perspectivas de mais vida na universidade.
O Relato
“Foi um desafio muito grande ser da primeira turma. Tudo era novo, mais
difícil. A própria inserção de uma universidade federal no Colégio Terezinha
Scaramussa, no município de Santa Cruz Cabrália, era uma coisa nova. Isso
trouxe muitas dificuldades, além de ser um avanço enorme para a educação do
nosso município. Teve bastante dificuldade no início para se moldar uma turma
de uma universidade federal em um Colégio Público no município.
Eu me lembro que uma das maiores dificuldades era o transporte. A maioria
dos estudantes, quase a totalidade, era de trabalhadores e trabalhadoras. A
gente sempre tinha dificuldade de chegar no horário inicial das aulas. Então
tínhamos que negociar o início das aulas das 18hs e 30min para as 19hs, até
mesmo 19hs e 30min, ainda que às vezes tivéssemos que estender um pouco mais no
final. O CUNI foi pensado para atender a esse público, para ter uma representatividade
local. Na nossa primeira turma nós já imaginávamos que teríamos o ônus de quem entra
no início; de ser de uma universidade nova; de estarmos num município que não
tinha ainda essa presença de uma universidade federal. Então, posso dizer que
tivemos muita dificuldade, mas tivemos muita aceitação da comunidade.
Especificamente da comunidade indígena tivemos um apoio muito grande das
lideranças. Na época éramos oito estudantes indígenas (se não me engano). Tinha
muita gente nova com aquele receio de quem acabou de sair do Ensino Médio
direto para a universidade. Tinha aquela proposta de universidade inovadora,
proposta nova, mas como tudo que é novo, teve aquele choque. Muitas vezes, a
gente precisava dialogar e buscar apoio externo enquanto comunidade indígena,
para estar afirmando nossa presença em mais este desafio que era levar os
jovens até o Ensino Superior.
Quanto ao prédio em que funcionava o CUNI, tínhamos dificuldades porque
éramos uma turma do Ensino Superior dentro do prédio de uma escola pública.
Então os horários eram diferentes, a gente tinha um pouco de dificuldade de
lidar com isso. Muitas vezes nós estávamos fazendo prova e tinha gente jogando
bola na quadra do colégio. Às vezes rolavam alguns atritos. Mas no geral foi
bem produtivo.
O conselho que eu dou, enquanto estudante: aproveitem esse período,
porque para mim foi o mais gratificante. Algo muito bom, você entrar em uma
universidade no seu município, ainda que nem todos sejam de Cabrália. O fato de
você não precisar sair de sua cidade para buscar os seus sonhos, (acredito eu
que cada um tem o seu sonho particular).
Antes de termos a universidade aqui, muitas pessoas desistiram desse
sonho por terem que se deslocar para outro município, pelos gastos que são
obrigadas a fazer para se transferirem para outra cidade para estudar, ficar
longe da família, longe de sua comunidade. Então muitas pessoas deixaram de
buscar esse sonho, por conta disso. Ter uma universidade federal no nosso
município é uma coisa bem importante.
Acredito que é um compromisso nosso fazer com que essa universidade se
torne cada vez mais a cara das comunidades tradicionais, a cara da comunidade
regional, do nosso município, do nosso território no Extremo Sul da Bahia.
Era isso que eu tinha para dizer. Agora fico à disposição das perguntas,
caso alguém queira fazê-las.”
A conversa
Érica: qual foi a sua maior dificuldade
ao ingressar na universidade?
Danilo: A maior dificuldade era com a
questão do horário. Eu já saía por volta das 17 horas, depois de um dia
cansativo de trabalho, ia para casa, tomava banho, comia alguma coisa e tinha
que sair correndo. Para mim isso gerava sempre muitos impasses. Aos poucos
consegui adequar o tempo e consegui cumprir a carga horária do CUNI com
bastante êxito.
Álamo: Havia muitos conflitos com a
comunidade escolar?
Danilo: Alguns (risos). Um dos mais
comuns, era que a galera do ensino médio nos via como “metidos”, “diferentes”,
por sermos da turma da universidade. Por mais que nós tivéssemos alguns amigos
que estudavam ali, de um modo geral, eu percebia uma certa rejeição das turmas
do segundo e do terceiro anos da escola. Isso foi até uma coisa boa (assim
entre aspas) porque logo no primeiro momento que a gente viu esse comportamento
deles, e nas aulas de alguns componentes, acho que em Universidade e Sociedade,
a gente conseguiu trabalhar com esse foco. Desenvolvemos projetos que visavam o
diálogo com as estudantes e os estudantes da escola. A gente tinha palestras de
professores que vinham da sede da universidade. A gente fazia convites para que
as turmas do terceiro participassem conosco e aos poucos a gente foi quebrando
esse gelo. Acabou que a gente amenizou mais essa visão. Mas tivemos muitos
conflitos. Uma época do São João, soltaram uns rojões dentro de nossa sala,
quebrou vidro, foi uma confusão enorme. Havia conflitos, mas nós
transformávamos as nossas aulas em experiências de diálogo com essa população,
sobretudo com as turmas que estavam saindo do Ensino Médio e entrando na
universidade. Nós estávamos ali, enquanto universidade, fazendo pontes.
Enfrentando os primeiros impactos que até nós sofremos, acho que conseguimos
trabalhar bem aqueles impasses iniciais.
Marino: o que impulsionou você chegar
onde você está agora? Por exemplo, no Segundo Ciclo.
Danilo: Hoje eu sou graduado no
Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades, curso que concluí no primeiro
ciclo da universidade, sou também graduando do Curso de Direito, agora estamos
vivendo um grande impasse (não sei se vocês estão acompanhando), mas temos um
impasse muito grande pelo fato de que o Curso de Direito ainda não foi aprovado
pelo MEC, mas enfim...O que me levou a estar aqui hoje foi a minha militância
mesmo. Eu sou liderança jovem na minha comunidade, desde o ano de 2008, apesar
da minha pouca idade. Como jovem liderança Pataxó, nas minhas vivências durante
as retomadas (a gente chama de retomada, o momento em que a população indígena
entra em uma terra que está de posse de fazendeiros ou outras pessoas que
tomaram essa terra dos nossos antepassados, nossos anciões). Então, pela minha
experiência em muitas retomadas, eu via o sofrimento do meu povo por ser
humilhado, ter que argumentar junto à justiça brasileira, o direito de estar
numa terra que sempre foi sua. Já passei por muita situação de conflito com
polícia federal, polícia militar...Então aquilo me despertou uma vontade de
conhecer mais a justiça brasileira, conhecer mais os meus direitos, enquanto
indígena, enquanto liderança indígena, enquanto população tradicional. Isso na
minha adolescência foi amadurecendo, continuei engajado na liderança da minha
comunidade, estive em inúmeros momentos de participação social. Então a minha
experiência com a comunidade a que pertenço, em Coroa Vermelha, me fez almejar
esse conhecimento, mais aprofundado nos Direitos das Populações Tradicionais,
sobretudo das populações indígenas. Nós sempre tivemos necessidade de advogados
indígenas, procuradores indígenas. Entendemos que mesmo com a FUNAI, que é uma
instituição governamental, ela nem sempre defende os nossos direitos. Eu
entendi que a melhor escolha era o Curso de Direito. Antes de entrar na UFSB eu
fui aprovado em Direito na UFBA e na UNEB, em Salvador, um ano antes de entrar
na UFSB, mas não tinha condições financeiras de ir para a capital. Quando eu
tive notícia da chegada da UFSB na região resolvi esperar e hoje estou aqui como
membro da primeira turma do CUNI, membro da primeira turma do Curso de Direito,
único estudante indígena representante dessa primeira turma, espero estar sendo
diplomado o quanto antes, para defender o meu povo. É por isso que eu estou
aqui.
Evelyn: Vocês que já passaram pelo CUNI
dizem sempre que este é o melhor momento para todos, porque? Lembro que rolava
e ainda rola muitos roubos nas salas da universidade.
Danilo: Essa questão é quase uma
unanimidade entre os meus colegas. Nós da turma de 2014 ainda conversamos
muito. No período em que estávamos fazendo o primeiro ciclo, nos encontrávamos
pelos corredores e conversávamos. Depois nos dividimos, uns foram para
medicina, outros foram para as licenciaturas. Mas sempre que a gente se
encontra, é unânime essa ideia de que o CUNI foi o momento mais especial na
nossa carreira acadêmica. Na minha opinião é porque a gente tinha um vínculo
maior de pessoa para pessoa, justamente por essa aproximação territorial. Por exemplo, a turma era toda de Cabrália,
moradores do município, então nós tínhamos aquele vínculo logo de início. Por
exemplo, quanto tínhamos dificuldades nos trabalhos da universidade, aquelas
pessoas que tinham mais conhecimento em uma determinada área ajudavam as que
tinha menos conhecimento. Então a gente sempre se apoiava muito uns com os
outros. Quanto aos roubos, eu não me recordo de nenhum roubo. Acho que isso
ocorreu numa turma posterior à nossa.
Alexandre: Quais as dificuldades que
você teve que enfrentar quando foi para a sede do Campus?
Danilo: Uma das maiores dificuldades
era ter que lidar com novas situações, novas pessoas. Quando nós chegávamos no
campus encontrávamos pessoas muito diferentes e isso causava muito
estranhamento porque estávamos acostumados com a nossa proximidade. A gente
chegava com uma identidade de CUNI muito forte. Não havia a mesma disposição de
apoio entre os colegas do campus. Tanto que até hoje nós temos esse forte
vínculo que foi formado no tempo do CUNI-Cabrália.
Clarissa: O que você tem a dizer para
as pessoas que entraram na universidade para fazerem o Curso de Direito e
encontraram a situação atual?
Danilo: Nós tivemos que judicializar
para podermos fazer com que a Universidade e o MEC resolvam a situação. Na
minha opinião pessoal, acredito que vamos enfrentar muitas dificuldades na
aprovação do nosso curso, sobretudo pelo momento que vivemos. No entanto, temos
excelentes professores, muito bons mesmo, esse é um dos principais motivos
pelos quais fiquei boquiaberto com o resultado dos avaliadores que não aprovaram
o curso. A gente sabe de outras universidades em que os cursos de Direito
funcionam o currículo dos professores nem se compara com o currículo dos nossos
professores, esse é um aspecto. Ano que vem, nós deveríamos estar prestando
nosso exame para a OAB, então para garantir o nosso direito à conclusão do
curso, entramos com uma ação judicial, mas enfim... Recomendo o curso para quem
tem esse sonho. O curso é bom, os professores são muito bons, as aulas são
dinâmicas e, por mais que hoje nós estejamos passando por essas dificuldades, a
gente já imaginava que iria passar por isso, pelo fato de sermos uma
universidade que está começando agora. Vocês agora não vão passar pelas
dificuldades que nós passamos. Não desistam.
Marino: Como você conseguiu organizar trabalho,
faculdade e estudos?
Danilo: No começo, quando passei a
fazer o BI de Humanidades, tinha que cursar muitos componentes curriculares no
turno da tarde. Aí o movimento estudantil, do qual que fiz parte (fui da
primeira representação estudantil da universidade), incorporou a pauta. Então a
gente pautou muito isso nas assembleias. Uma das cobranças que nós fazíamos era
de que fossem ofertado o mínimo de componentes no turno da tarde, ou na verdade
que fosse feita uma oferta no turno da noite, para que os estudantes
trabalhadores não tivessem que enfrentar esse tipo de dificuldade. Eu tinha que
dialogar muito com a coordenação do curso, com os meus superiores no trabalho.
Também tinha que recorrer às leis que garantem ao trabalho a destinação de
carga horária para os estudos. Então eu fiz de tudo um pouco. Em alguns
momentos eu tive que postergar os componentes, alguns deles terminei há pouco
tempo, participar do movimento estudantil me possibilitou encontrar meios para
chegar até aqui.
Os comentários
“O relato dele
me inspirou muito. Pude perceber que terei um grande futuro, mesmo com muitas
dificuldades” Érica Trancoso.
“As memórias dele
me fizeram pensar no meu futuro acadêmico na UFSB, como as brincadeiras em
grupo e as amizades que posso (ou não) ter pela frente, e as histórias de luta
com o povo dele me deram incentivo, e me levaram a pensar que também devo lutar
pelos meus direitos assim como ele” Clarissa
Rodrigues.
“Agora penso no quão
gratificante é poder ingressar na universidade através do CUNI, inspira a
buscar o que eu quero, apesar das dificuldades, tudo no final vale apena!” Evelyn Benfica.
“Eu pensava que as
coisas seriam mais difíceis, mais vi que não é um bicho de sete cabeças. Vi que
além das dificuldades, todos nós vamos conseguir chegar onde o Danilo está
agora, mesmo passando por vários desafios” Amanda
Benfica.
“Me fez pensar em
como eu quero fazer o curso de direito, e não é para eu desistir. Eu estava um
pouco triste, mas com o relato dele, fiquei feliz. Tenho um futuro lindo pela frente” Mikaelly Souza.
“Me deixou
orgulhoso, primeiro pôr ele ser índio, segundo porque ele está trilhando sua
própria história. Em meio a tantos comentários inerentes que a sociedade não
índia tem. Ele com certeza vai servir de espelho para muitos jovens” Marino.
“Imaginando como será dificultoso
conciliar estudo e trabalho, como será esse conflito com os próprios alunos do
colégio, isso se as coisas voltarem ao normal, antes do cumprimento do primeiro
processo aqui no Cuni. Também será uma experiência boa realizar os estudos na mesma
instituição em que cumpri o ensino médio, entre outras coisas” Alexandre Palma Santos.
“Ouvir o relato
dele, de como ele conseguiu conciliar suas coisas da vida pessoal com sua vida
universitária, me deu um fio de esperança. Até uns minutos atrás, pensei em
desistir, e ouvi-lo falar sobre as dificuldades e sua "vitória",
digamos assim, me deixou bastante animada e esperançosa” Karolaine Sales.
“Não podemos
desistir pois as dificuldades nos levam a grandes sucessos. Devemos seguir em frente,
mesmo sabendo que nada é fácil. Lutar sempre, desistir jamais.” Joilson Filipe.
“Por ser indígena
e trilhar o mesmo caminho meu, são coisas que fortalecem para não desistir, e
são relatos que nos fazem fortalecer independente das dificuldades, sabemos que
nada é fácil, mas se fosse fácil não seria luta” Kécia Guedes.
“Me fez pensar em
não desistir. Seguir em frente, mesmo nos momentos de lutas que estamos
vivenciando agora, que é essa pandemia. Nem só por isso desistiremos dos nossos
sonhos. Ele me inspirou a correr atrás dos meus objetivos, apesar das
dificuldades” Mariane Nascimento.
“Fácil não vai ser, mas se chegamos
até aqui, por que desistir? Temos que persistir em meios as lutas para obter a
Vitória. Temos que passar pelas dificuldades” Danile Santos.
“Cheguei no finalzinho da fala
dele... Vou colocar de acordo com o que ouvi. Haverá alguns obstáculos, mas
nada muito grande que você não possa continuar. A trajetória dele nos incentiva
a continuar e não desistir” Maria
Eduarda Carvalho.
“Me fez pensar nas dificuldades que
ele enfrentou em conciliar o trabalho com os estudos. Atualmente estou
vivenciando essa situação, assim como a maioria aqui. Ele é a prova e inspiração
de que eu posso mais, e que dificuldades existem para nos fazer mais fortes” Daniele Santos.
“Gostei muito do relato. Realmente me
empolgou. Estava meio desanimado esses dias, mas agora estou começando a ter um
maior gás. Tenho certeza que não sou só eu que tenho esse sentimento, tudo que
está acontecendo hoje, é extremamente complicado e nos pegou de surpresa. Por
vezes isso acaba por nos desanimar. Esse bate papo é importantíssimo para nos
animar a prosseguir com os estudos” Otávio
Bartah.
“Me fez pensar em não desistir, pois
a luta dele foi grande, por mais que estejamos com essa dificuldade com a
pandemia, a luta dele foi muito maior e com uma dificuldade grande, mas
continuou na luta e agora está perto de concluir. O relato dele me incentiva a
continuar e lutar tanto pelos estudos, quanto pela minha comunidade, pois
também quero fazer direito, para lutar e defender o meu povo, quero ser advogada
para minha comunidade indígena, e lutar pelos direitos dos meus parentes” Aline Silva Ferreira.
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