Confluências grevistas na reconstrução da vida pública.

 


“Confluência é a lei que rege a relação de convivência entre os elementos da natureza e nos ensina que nem tudo que se ajunta se mistura, ou seja, nada é igual. Por assim ser, a confluência rege também os processos de mobilização provenientes do pensamento plurista dos povos politeístas” Nego Bispo.

 

A greve das servidoras e dos servidores públicos federais da educação produziu importantes confluências nos cenários geopolíticos do país. Inscreveu a participação da classe trabalhadora nos processos de reconstrução da vida pública nacional, acentuando importantes contrapontos com classes dirigentes das instâncias governamentais. Expandiu redes de sociabilidades sindicais no interior de Instituições Federais de Ensino (IFEs) marcadas por interdições sanitárias recentes, por efeitos de eventos climáticos extremos, pelos ataques à democracia e pela ascendente precarização das condições laborais.

O movimento grevista articulou múltiplas redes de força em escalas nacional e local, disputando importantes espaços de interlocução com o atual governo no desafio coletivo de reconstrução das instituições públicas. Algumas barreiras de silêncio impostas aos movimentos sociais em educação desde a transição governamental entre os anos de 2022 e 2023 foram ultrapassadas, o que indica importantes avanços para a continuidade das lutas que não se encerram com o fim da greve. Por outro lado, ao longo das negociações o governo impôs ultimatos, subalternizando as classes trabalhadoras em luta por condições mais dignas de pertencimento ao serviço público federal.

Ocupado com a preservação do sistema financeiro, subserviente aos parâmetros neoliberais das políticas educacionais e colonizado pelas fundações de interesse privado que disputam o financiamento público da educação, o atual governo vinha trabalhando de costas para as servidoras e servidores públicos federais da educação até o acontecer da greve. Desde o início do mês de janeiro do ano de 2023, quando a transição ainda estava em curso, os principais sindicatos da Rede Federal de Educação tentavam dialogar com o governo sem muito sucesso.

A primeira Carta enviada pelo Andes (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior) ao ministro da Educação está datada de 02 de janeiro de 2023, o documento apresenta os principais pontos programáticos do sindicato em defesa da Educação Pública. Em face ao silêncio do Ministério da Educação, o ANDES- SN reiterou a reivindicação de abertura de agenda - mantendo todos os pontos de pauta - no mês de agosto de 2023. O silêncio governamental atravessou barreiras temporais e só foi rompido com a deflagração da greve de 2024. 

A greve iniciada no mês de março pela FASUBRA (Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil) ganhou corpo e força com a adesão do SINASEFE (Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica e Profissional), do Andes-SN e das Associações Sindicais vinculadas ao PROIFES - Federação (Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e Ensino Básico, Técnico e Tecnológico). Articuladas em rede e mobilizadas pelo esforço coletivo de abertura do diálogo com o governo federal, essas instâncias disputaram de maneira plural os sentidos da reconstrução da vida pública, a partir das lutas históricas das classes trabalhadoras da e na educação.  

As configurações dessa ampla rede de forças foram atravessadas por múltiplas diferenças nas condições de participação na luta sindical. Diferenças que distinguem as IFEs criadas no século passado daquelas oriundas dos processos e expansão e interiorização do século XXI. Diferenças entre classes de servidores e servidoras públicas que constituem as forças produtivas das instituições. Diferenças de condições de permanência das comunidades discentes ingressantes pelas Políticas de Ações Afirmativas e dependentes dos investimentos em Assistência Estudantil. Assimetrias nas relações de poder internas às universidades, agravadas pela nomeação de interventores e interventoras durante o Governo Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão.  Diferenças inscritas na ampla capilaridade territorial da multicampia que impacta diretamente a consolidação dos compromissos assumidos com os territórios locais. Esse breve inventário de diferenças na participação não se esgota aqui, mas pode servir de esboço para compreendermos que nem sempre o que nos ajunta é o que nos mistura.

Suspeito que estamos saindo da greve para seguirmos em outros movimentos em defesa da educação pública. Falo a partir de uma ambivalência radical da minha relação laboral como servidor público federal: comecei minha jornada no serviço público em uma instituição com mais de setenta anos de existência, migrei para uma instituição com onze anos de criação e que completa neste ano da greve, dez anos de funcionamento. Participei do movimento grevista com um pé lá e outro cá, tentando compreender o momento presente das lutas de trabalhadoras e trabalhadores das IFEs a partir das diferentes posições que ocupamos na vasta rede de forças que se altera nos próximos dias.

Destaco como principais atravessamentos de sentidos nas confluências entre o movimento nacional e o movimento local: as sociabilidades sindicais produzidas nos debates com instâncias governamentais; as contradições nos modos de fazer a greve e os seus efeitos na formação política dos servidores e servidoras da educação; a visibilidade das desigualdades entre instituições da Educação Superior e do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico; a visibilidade das desigualdades entre classes de servidores com o agravamento das condições de subsistência das trabalhadoras e dos trabalhadores aposentados.

No plano nacional o movimento grevista articulou uma rede de entidades que reúne mais de 300 mil sindicalizados e atende direta e indiretamente a uma parcela significativa da população brasileira. As milhares de servidoras e servidores que sustentam essa rede constituem as principais forças produtivas do Estado brasileiro na construção e condução das políticas públicas educacionais do país. Abrir o debate público com o governo por meio da greve foi a forma de reivindicar as condições que nos são negadas no processo de reconstrução das instituições públicas desmontadas pelos governos anteriores. No plano local conseguimos romper barreiras de segregações entre diferentes gerações de servidores e servidoras. Ultrapassando paredes, muros e corredores que nos separam como docentes da Educação Superior, docentes do Ensino  Básico, Técnico e Tecnológico, servidores técnicos administrativos em educação e discentes. Em nossas comunidades locais vivenciamos experiências de alta densidade no fortalecimento dos vínculos com as instituições em que atuamos. Nossas pautas locais expressam denúncias e anúncios dos projetos de educação pública em que atuamos.

As contradições nos modos de condução da greve também introduziram atravessamentos importantes nos horizontes históricos do movimento. A escolha política pela adesão governista do PROIFES expôs o sindicalismo de resultados ao isolamento político e a um constrangedor rebaixamento da sua condição de mediador nas lutas sindicais do presente. A construção do movimento grevista com ampla participação das bases deu o tom e rumo na organização dos esforços coletivos no enfrentamento dos conflitos internos que incidem nos nossos cotidianos laborais. No âmbito local, a atuação dialógica entre as classes de servidores e servidoras, na defesa pela democracia participativa e com ênfase nas questões que afetam diretamente nossas condições de trabalho fortaleceram nossas identificações sindicais na luta pela base.

Ao longo da greve foram apresentados e debatidos importantes estudos que situam as desigualdades entre classes de servidores dentro do setor da Educação e entre outros setores do Serviço Público Federal. Tais desigualdades mantém antigas contradições, tais como as diferenças abissais entre servidoras e servidores do executivo e servidoras e servidores do legislativo e do judiciário. Expressam ainda, contradições emergentes das políticas mais recentes de investimento na expansão e interiorização das IFEs. As classes de servidoras e servidoras da “Geração Reuni” são as mais afetadas pelas perdas salariais dos últimos dez anos. Tais desigualdades também aprofundam conflitos de gênero, raça, etnia, geração e de pessoas portadoras de deficiências. Os ambientes internos de nossas instituições sustentam padrões patriarcais, meritocráticos, racistas, etaristas e capacitistas na distribuição do poder e no controle das instâncias decisórias. Penso que a produção de conhecimento que nos faz compreender as desigualdades em amplas escalas, nos desafiam exercícios de letramentos críticos de nossas realidades locais a partir das intersecções de classe, gênero, raça e etnia, geração e de pessoas portadoras de deficiências com que convivemos em nossas instituições. Ao longo da greve aumentaram as denúncias de racismo, abusos e assédios moral e sexual que ocorrem na extensa rede de nossas IFEs.

Outros estudos e debates produzidos ao longo da greve nos apresentam as desigualdades entre as nossas instituições. Além da disparidade de tratamento orçamentário do governo entre o investimento em educação, saúde e assistência social em comparação com os recursos enviados para o pagamento da dívida pública, a distribuição de recursos entre universidades também é desigual. Importante estudo realizado pelo Dieese nos revela as grandes distorções no repasse de recursos para as universidades federais entre os anos de 2010 e 2022. Em recente encontro realizado na nossa Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), reitores e reitoras das “Novíssimas e Supernovas Universidades” apresentaram dados que demonstram inúmeras assimetrias de tratamento governamental na implementação das instituições criadas às vésperas do golpe contra a democracia, durante o golpe e no governo Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão. Isso nos faz compreender que no âmbito local, as condições de existência das instituições criadas e implementadas nos últimos onze anos é profundamente mais desigual do que as suas ancestrais.

            As confluências grevistas do nosso movimento nos devolvem o lugar negado à classe trabalhadora das IFEs brasileiras na reconstrução das instituições públicas. Os atravessamentos de sentidos emergentes das sociabilidades sindicais que experimentamos nos últimos meses nos situam nas indeterminações do presente. Os conhecimentos produzidos em escalas nacionais e locais abrem perspectivas de horizontes que não existiriam se não chegássemos aqui, maiores e mais fortalecidos enquanto classe trabalhadora do serviço público federal. Governos passam, nós prosseguimos na lida diária de construção e sustentação da vida das instituições públicas.


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