A transição interrompida


A transição curricular do Ensino Médio foi bruscamente interrompida com a suspensão das aulas por conta da pandemia. Além da confusão na coexistência entre modelos vigentes e modelos emergentes, as jovens e os jovens que ingressaram no Ensino Médio este ano permanecem sem saber exatamente a que currículo pertencem.

A maioria dos estados brasileiros optou por fazer a transição curricular gradualmente, iniciando pelo primeiro ano do Ensino Médio e por conjuntos de escolas-piloto em 2020. No caso do estado da Bahia, com uma rede de aproximadamente 1370 escolas estaduais, a Secretaria da Educação selecionou 565 unidades escolares para realizar a implementação este ano. Apesar das escolas eleitas estarem elaborando Programas de Flexibilização Curricular desde 2019, a maioria das professoras e professores, assim como funcionários e funcionárias, estudantes e suas famílias só tiveram conhecimento das mudanças curriculares na jornada pedagógica no mês de fevereiro deste ano, no mês de março as aulas foram suspensas por força das medidas sanitárias para controle da expansão global da COVID-19.

As mudanças alteram significativamente as configurações curriculares existentes e, enquanto não forem concluídas, obrigam a coexistência de tratamentos pedagógicos para dois modelos muito diferentes entre si.

No modelo anterior à Reforma e a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), por exemplo, não existe separação rígida por áreas de conhecimento, a carga horária anual é de 800 horas e o conjunto de componentes curriculares oferecidos goza de grande estabilidade didático-pedagógica (uma vez que já eram ofertados por um longo prazo de tempo nas escolas). Esse modelo continua existindo para as estudantes e os estudantes que ingressaram no segundo e terceiro anos do Ensino Médio em 2020. Ano que vem será oferecido apenas para quem estiver no terceiro ano. Em 2022 deixa completamente de existir para as escolas que iniciaram as mudanças esse ano.

O modelo imposto pela Lei da Reforma (13.415/17) separa as áreas de conhecimento, sugere a composição de arranjos curriculares na forma de itinerários formativos (uma combinação entre áreas proposta pela escola que induz a escolha das estudantes e dos estudantes), amplia a carga horária para 1000 horas, impõe 60% (sessenta por cento) da oferta da BNCC e 40% (quarenta por cento) da parte diferenciada do currículo (construída pela rede estadual como um todo e com autonomia das escolas para a criação de componentes curriculares específicos de cada contexto). É o modelo obrigatório para quem entrou esse ano no primeiro ano das escolas-piloto e substituirá o modelo anterior ano após ano, em todas as séries, até ser concluído em 2023. Como se não bastasse o efeito imediato das muitas inovações no cotidiano da escola, há um amplo conjunto de normas e regras institucionais que vão levar muito tempo para serem compreendidos pelo vasto corpo social que depende direta ou indiretamente das escolas públicas.

As alterações da LDB com a já citada Lei da Reforma, assim como a BNCC e as Novas Diretrizes Curriculares do Ensino Médio, ainda não “chegaram” à toda a população brasileira. Matéria desconhecida para muitos profissionais da educação que por força das sobrecargas de trabalho docente ironicamente acabam se alienando das mudanças nas regras que afetam diretamente suas condições laborais. O que dizer então, das jovens e dos jovens (e suas famílias) que migram de um sistema municipal (responsável pela oferta do Ensino Fundamental) para um sistema estadual e, já no primeiro ano têm que aderir a um novo modelo que mal sabem como foi imposto em suas vidas?

No final das contas, a gestão das mudanças acaba sob controle de pequenos grupos que, para o bem e para o mal, dominam as relações de poder nas escolas e nas redes, reduzindo o desafio da colaboração e do trabalho participativo nas escolas a um mero efeito retórico de uso e abuso do discurso democrático para práticas autocráticas, que alimentam autoritarismos de grandezas variadas dentro e fora dos contextos escolares. Enquanto grassa a ignorância sobre o que diz a lei e o como se faz a escola, persistem as dinâmicas autoritárias que obstaculizam a ampliação dos espaços e tempos da participação social na vida escolar.

A julgar pelo necessário avanço na suspensão das aulas presenciais, a probabilidade mais forte no momento é que o ano letivo de 2020 avance 2021. Isso  aumenta a complexidade da transição até agora interrompida, ela deverá ser retomada em regime de sobreposição de etapas e metas, o que tornará ainda mais confuso o processo para quem entrou no Ensino Médio agora. Impossível prever resultados. Estamos diante de uma estranha paisagem educacional em que a única mudança que se apresenta é ausência de saídas para uma Reforma autoritária na sua origem e inconsequente nas suas ações até o momento.


Comentários

  1. Boa análise da confusão, caro Álamo. Não conhecia o seu blog. Vou dar uma investigada nos artigos. Um abraço.

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