Educar, Habitar, Viver

 


Enfrentar difíceis condições materiais de vida constitui a outra forma de habitar o mundo, vinculada ao ato de educar, de professoras e professores do nosso país. Da escala pessoal às grandes escalas sociais, profissionais da educação vivem mal com o pouco que ganham e ainda tem que levar trabalho para casa, ou morar no trabalho enquanto sonham com uma casa própria. Os casos podem variar, mas a precariedade das condições de vida persistem como um traço forte na biografia social de professoras e professores brasileiros.

No final do ano passado conheci a professora Vê. Negra, mãe de dois filhos adultos, avó de uma garota de 09 anos, 56 anos de idade e 30 de profissão. Trabalhava há 15 anos em uma escola da zona rural do município de Porto Seguro (Ba). Era professora de uma escola do Ensino Fundamental, lecionava para crianças do primeiro ao quinto ano. Morava na escola e visitava a filha e a neta uma vez por mês, para abastecer a casa com a cesta básica. Além do salário, Vê ganhava algum trocado comercializando balas e outros doces entre as crianças da escola. A professora e baleira estava prestes e inaugurar a casa própria, construída com o dinheiro que conseguiu economizar ao longo dos anos, enquanto morava nos aposentos reservados aos docentes da escola.

Ali, na pequena habitação escolar em que vivia há mais de uma década, dormia na parte de baixo da cama beliche, debaixo da cama organizava espaço para a mala de roupas, a caixa com os produtos do seu pequeno comércio e bacias com os aviamentos necessários do monta e desmonta da cozinha na parte externa do pequeno cômodo, em frente ao banheiro (que também servia de lavanderia comunitária). Dividia o quarto com outras três ou quatro professoras (o número variava conforme o ano letivo). Outro cômodo anexo, nas mesmas dimensões e condições, abrigava os professores. Dois quartos, um banheiro que fazia as vezes de área de serviço e uma varanda mínima que fazia as vezes de cozinha definia aquele pequeno condomínio docente improvisado nos fundos da escola.

Fiquei hospedado ali por duas vezes, realizando uma atividade de extensão universitária na escola. Ouvir os relatos de Vê tornou-se uma das minhas mais agradáveis experiências. Além de conhecer mais sobre como vivia aquela professora que morava na escola, tomei conhecimento do seu maior projeto de futuro: aposentar-se e finalmente habitar a casa nova, que já estava ‘no ponto do azulejo’. Falar da nova habitação arregalava os olhos de Vê, iluminava-os também. Descreveu-me a planta da casa por várias vezes, explicando-me o projeto executado em regime de partilha com os filhos, a neta e o pedreiro de confiança da família. A habitação foi pensada e feita na comunhão de afetos familiares. Aquela moradia já era a sua maior construção de vida, recompensa justa para os anos dedicados à dureza do magistério.

A proximidade da aposentadoria aproximava a professora das condições de vida que nunca conseguira alçar ao longo das suas jornadas de trabalho. No cenário brasileiro as histórias variam, mas a precariedade persiste na forma de dados qualitativos e quantitativos que falam sobre as configurações socioeconômicas das condições de vida de professoras e professores.

Pesquisa realizada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) no ano de 2017, revela de maneira clara as múltiplas variáveis e números da precariedade em que vivem a maioria das professores e dos professores do nosso país. A pesquisa foi realizada com base nos dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) à luz das metas do Plano Nacional de Educação que remetem à melhoria das condições de vida das professores e dos professores, sobretudo no que diz respeito à implementação do Piso Salarial Nacional.

Os dados referentes à situação de domicílio segundo a inadequação domiciliar para as moradias (os números remetem ao ano de 2015) revelam, em larga escala, os cenários em que podem vicejar narrativas aparentadas às crônicas de vida da professora Vê. O quadro nacional mostra que nas Regiões Metropolitanas 71,6% das professoras e dos professores vivem em locais inadequados à moradia, nas Regiões Urbanas não Metropolitanas o número é de 67%, nas Regiões Rurais o número é de 7,5% (o que coloca a professora Vê como parte de uma minoria quanto à região em que trabalha, e ao mesmo tempo como parte de uma ampla maioria do local em que habita no cenário nacional como um todo). Os critérios que definem a inadequação do local de moradia são do IBGE e indicam aspectos como difícil acesso a água potável, inexistência de construções de alvenaria, dificuldade de coleta de esgoto e lixo, por exemplo.

A pequena história do modo de habitar e viver da professora Vê repercute, às vezes para pior, na grande maioria dos professores e das professoras brasileiras. Do ponto de vista econômico, Educar, Habitar e Viver dependem diretamente do investimento público na força de trabalho docente. O direito a um Piso Salarial Nacional remete a uma velha luta das trabalhadoras e dos trabalhadores em educação por uma qualidade de vida que assegure melhores condições de produção enquanto estão na ativa, a serviço da boa formação das cidadãs e dos cidadãos do nosso país.

Na semana em que o Presidente da República anunciou o interesse em acabar com o aumento real do Piso Nacional dos Professores, alterando a lei do Piso na Lei do FUNDEB que tramita no Congresso Nacional (fato ocorrido no último 19 de outubro), lembrar as condições em que educam, habitam e vivem as professoras e professores da Educação Básica no Brasil é um ato político a favor da vida, contra a mórbida estupidez que move as máquinas de poder do nosso país.


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