Religião e Fake News
Uma amiga alemã revelou-me que a mãe resiste à vacina contra a covid-19
por motivos religiosos. O padre da sua paróquia, na região da Bavária, recomendara
aos fiéis a renúncia ao medicamento para não fortalecerem a vida no pecado.
Quis saber mais sobre aquele intrigante drama cristão (católico
apostólico romano). A amiga resumira o sermão que a mãe ouvira na missa online. Durante a liturgia daquele dia o
padre descrevera a vacina que circula no interior da Alemanha, como um composto
à base de placenta originária de processos abortivos. Narrava o ocorrido com a
perplexidade da primeira vez que ouvira o “absurdo” dos fatos.
Enquanto ouvia o relato, lembrava-me de uma breve passagem da Miséria
da Filosofia, de Karl Marx (o texto original fora escrito entre 1846-1847). A
certa altura da obra, o pensador alemão nos indica que a diferença entre o
cristão e o filósofo é que o primeiro conhece apenas uma forma de
racionalidade, o outro é obrigado a conhecer o maior número de racionalidades e
saber distingui-las por força do ofício. A velha lição de um dos maiores
pensadores dos últimos séculos continua valendo.
A situação narrada pela amiga nos colocava no meio de uma cena cada vez
mais comum em escala planetária, o uso de fake
news a serviço da dominação cultural. As instituições religiosas não
escapam, sobretudo as monoteístas, que em nome de um único Deus conseguiram
fundir “devoção” e “conhecimento” em um mesmo esquema de pensamento que
conhecemos vulgarmente como “cristianismo”. O manejo religioso das notícias
falsas opera uma espécie de “licença profética” à inverdade em nome da salvação
futura da almas daquelas e daqueles que permanecem no presente “escravos do
pecado”.
O modo de operar das religiões,
sobretudo as monoteístas, serve de base de sustentação para outras formas de
dominação que, em larga medida, forçam a distorção de fenômenos de alta
complexidade sob a devoção de categorias do “pensamento único”. Esse talvez
continue sendo, um dos maiores desafios de todos os tempos, compreender a
diferença entre a devoção a “modelos de pensamento único” que servem a “sistemas
de dominação cultural” e o conhecimento de “modelos plurais de pensamento”
necessários à “crítica dos sistemas de dominação cultural” para avançarmos
socialmente nos horizontes da história.
A expansão da pandemia em escala planetária revela em profundidade
tanto as desigualdades sociais, quanto os limites das “monoculturas hegemônicas”
para o enfrentamento reflexivo da crise em que nos encontramos. Compreender a oposição entre “cristãos” e
“filósofos”, como nos ensina Marx, é fundamental para lidarmos com as
diferenças de pensamento que pesam no diálogo vital em defesa das condições de
enfrentamento da pandemia. Igualmente fundamental compreender que entre
“cristãos” e “filósofos” existem outras tantas expressões de operários e
operárias do pensamento indispensáveis para compreendermos mais o presente,
tais como: xamãs, pajés, yalorixás, sobas, rabinos, gurus, ateus e agnósticos
que se encontram no momento, também, vulneráveis à agressividade de um vírus
produzido pelo modelo de vida que impera entre nós.
Quanto menos fake news, mais
vida. Precisamos de religiões e filosofias
que nos ajudem a cuidar da vida que temos aqui e agora, por mais vertiginosa
que seja a pluralidade dos exercícios de viver e pensar que tenhamos pela
frente.
Bom dia. Também apresento o programa Falando de Gente que vai ao ar pela webradio Baruk FM. Podemos entrevista.lo?
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