Sociabilidades interrompidas
Estamos concluindo
as atividades letivas com os primeiros grupos de estudantes que ingressaram na
universidade durante a pandemia. As formações das turmas de ingresso enfrentam
limites impostos pelo trabalho remoto, um deles, específico da geração que
ainda não pisou no chão da universidade, tem sido a produção de vínculos
sociais, presencialmente, com colegas e professores.
O momento nos
impõe formas de convivência transpassadas por inúmeras interdições. A vida
social na sala de aula offline extrapola
as relações pedagógicas restritas aos processos de ensino-aprendizagem em
muitos aspectos. Tornar-se parte de uma turma tem os seus rituais próprios,
muitos deles exigem a proximidade física no espaço e no tempo, para a criação e
aprofundamento dos laços de pertencimento com a turma e com universidade como
um todo.
As novas
invisibilidades produzidas pelo trabalho online,
associadas com a instabilidade das presenças, resultam na interrupção de
processos interativos fundamentais para as identificações uns com os outros.
Importantes estudos sobre a ocupação dos espaços-tempos no cotidiano escolar
mostram, por exemplo, que sentar-se próximo ou distante de alguém produz
múltiplas relações sociais na sala de aula, algumas delas decisivas para o
avanço nos processos formativos.
Conversar
sobre conteúdos das aulas; tagarelar sobre amenidades da vida social; comentar
comportamentos sociais de colegas e professores; reclamar dos excessos de
leituras e atividades dos componentes curriculares são práticas sociais que se
aprofundam e expandem com a proximidade física. O exercício intensivo destas
práticas acelera os processos de identificações com a vida universitária.
Na atual
conjuntura, as dificuldades para ver, ouvir, conversar e mesmo distrair-se com
colegas e professores no espaço de uma sala de aula persistem como desafios
para a transformação de muitos dos nossos processos institucionais online. Desde que fomos obrigados a
suspender nossas atividades presenciais, para assegurar as condições sanitárias
às pessoas com quem trabalhamos e convivemos na universidade, pouco avançamos
na construção de condições outras para seguirmos adiante no fortalecimento dos
vínculos nas teias sociais que passamos a compor em plataformas remotas de
ensino-aprendizagem.
Como educador
no atual momento, entro e saio dos ambientes virtuais de aprendizagem com a
sensação de que tento conter “tsunamis” com uma raquete de frescobol. Explico
melhor, a cada aula aumenta a onda de ausências e as ferramentas de que
disponho são obsoletas para conter o fenômeno.
Como educador
acredito firmemente que o que sustenta presenças em sala de aula são as redes
sociais constituídas na convivência em sala de aula. A aula, para mim, é um
modo de mover as redes para muitos lados. Em muitos sentidos pode fortalecê-las,
enfraquecê-las, mas dificilmente desmembrá-las. A não ser em contextos
educacionais muito autoritários.
Agora, que
estamos em processo de conclusão das atividades com a primeira “geração
discente” ingressante na pandemia, assistimos por meio remoto uma aceleração de
algumas crises específicas das nossas salas de aula: baixa presença, pouca
participação, desistência precoce dos estudos e dificuldades no aprimoramento
de algumas habilidades básicas para o avanço na vida acadêmica. Esse último
aspecto nos coloca vários sinais de alerta quanto à qualidade da aprendizagem
neste período.
Criar soluções
exige sobretudo exercícios coletivos de conversações sobre os problemas com os
quais convivemos. Apesar das limitações impostas para o trabalho presencial,
nada dos impede de ocupar os espaços online
com atividades que nos façam ultrapassar as barreiras dos silêncios e da
invisibilidade. O uso do chat para perguntas e respostas é uma alternativa para
a construção de circunstâncias dialógicas em que trazemos para a “sala de aula online” o que nos constitui, limita e,
também, inquieta enquanto grupo.
Foi nesta
perspectiva que após a formação do maior número de presenças no penúltimo
encontro (sexta feira, 29 de janeiro de 2021), entrei na conversa com as
estudantes e os estudantes que ali estavam e perguntei: qual a principal
dificuldade enfrentada por vocês durante esse primeiro quadrimestre de
formação? As respostas foram as
seguintes:
“Cara, o meu maior obstáculo tem sido
o meu psicológico, eu estou com muita dificuldade pra focar nas coisas, no
início eu lidei com tudo muito bem, mas pro finalzinho, juntaram muitos
problemas pessoais, o que só piorou. Óbvio que a conectividade também é um problema
pra todos, mas no contexto da pandemia acredito que os problemas psicológicos
dificultam muito, e é um tema que vejo que é pouco falado, mas me afeta muito
mesmo.” (Clarissa, Cuni Cabrália 2020.2)
“Para mim a maior dificuldade foi o
acesso. Não só para mim, como para todos.
Está sendo tudo novo para mim. Não me adaptei ainda ao tempo. Está sendo
muito difícil ter aulas online, e ter
muitas atividades com pouco tempo que temos... Estou muito preocupada com as
desistências dos alunos, são muitos. Acho que eles estão com problemas para
acessar as aulas”. (Amanda, Cuni Cabrália 2020.2)
“A minha primeira dificuldade foi ter
que estudar online, nunca gostei e
tive que me adaptar, fora a Internet que é bem complicada, cai muito. Sinto
Muita falta de estudar presencial, apesar de ser bem cansativo para quem estuda
e trabalha.” (Mikaelly, Cuni Cabrália 2020.2)
“Minha maior dificuldade logo no
começo das aulas remotas foi estudar com o aparelho celular. Não tenho notebook, então dificulta muito nos
estudos. Logo no começo das aulas comecei a sentir ansiedade pois estava
nervosa de como seriam as aulas remotas, porém fui me acostumando. Consegui me
adaptar.” (Mariane, Cuni Cabrália 2020.2)
“Falta de conectividade, dificuldade
em administração de tempo, pouca interação entre colegas durante as aulas...”
(Jadson, Cuni Cabrália 2020.2)
“Estudar a distância é um obstáculo
pra mim pelo fato de ficar horas na tela do celular. Não é a mesma coisa da
presencial, mas com o tempo fui me acostumando e me apropriando da minha carga
horária do meu dia a dia com trabalho, UFSB e outro curso que também faço a
distância. No geral, a maior dificuldade é a internet que acaba prejudicando a
todos.” (Kécia, Cuni Cabrália, 2020.2)
Os
micro relatos das estudantes e dos estudantes apontam as múltiplas faces das
obstruções sociais impostas pelo atual momento, sejam elas: psicossociais,
econômicas, interativas, comunicacionais e mesmo auto organizacionais. A
produção de respostas gerou um texto coletivo que, em alguma medida, faz com
que cada uma e cada um ultrapasse o silêncio, escreva a sua palavra e leia a
palavra daquelas e daqueles com quem se faz presente no acontecimento da
“aula”.
No contexto
específico da atividade que praticamos; escrever, ler e debater os textos
produzidos resultou em exercícios de se ver nos enunciados dos outros.
Transformamos questões pessoais em questões sociais com as presenças reunidas
naquela sala do google meet.
A
preocupação reiterada com a aparente “desistência” do colegas e das colegas,
por exemplo, tem uma justificativa qualitativa que expressa a solidariedade com
os outros, como um princípio manifesto de estar ali. No contexto da nossa
turma, há uma justificativa de base quantitativa também, no nosso primeiro
encontro (no mês de outubro de 2020) estavam presentes 19 estudantes de 29
matriculados. Ao longo das semanas houve oscilações entre os números de
presenças, quedas significativas na apresentação de resultados para as
atividades encaminhadas e uma redução assustadora no penúltimo dia de encontro.
O número de presentes corresponde ao número de relatos anteriormente citados:
06 pessoas. Estávamos em uma sala quase vazia.
Enquanto perdurar o distanciamento social no contexto da pandemia; produzir as condições de sociabilidade que fortalecem e ampliam as nossas presenças em sala de aula exige, também, problematizar o presente, exercitar escritas e leituras acerca das dificuldades que enfrentamos para estar juntos. As memórias das vivências com o ensino presencial nos lembram que toda sala de aula se torna maior quanto mais socializamos as múltiplas experiências de vida que ocupam esses espaços. Talvez estejam nessas memórias as melhores alternativas para a tessitura das sociabilidades possíveis nas plataformas online em que nos ocupamos com o importante trabalho da educação no momento.
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