Pedagogias do estranhamento

 


Passamos por um dos piores momentos da pandemia do coronavírus no Brasil e no mundo. Além do aumento expressivo de casos, da evidente omissão do governo brasileiro (com o agravante discurso negacionista do Presidente da República), assistimos a ultrapassagem dos 240 mil mortos sob efeito de uma aparente “naturalização” do estado de calamidade sanitária em que nos encontramos.  

Não compreendo a naturalização como o oposto do estranhamento, compreendo-a  como uma das forças emergentes de situações radicalmente diferentes daquelas que estamos habituadas e habituados a enfrentar no cotidiano. O outro processo derivado do estranhamento é a compreensão do inacabado, do social em se fazendo às margens das incertezas. Tanto um quanto outro processos são construídos socialmente. Com isso quero afirmar que o estranhamento é uma potência geradora de forças de naturalização ou de inquietação no trato social com as situações que tomamos por outras nas nossas experiências de convívio cotidiano.

O estranhamento introduzido pela pandemia produziu muitas divisões no Brasil. Uma dessas divisões passou a gerar discursos tais como: “é só uma gripezinha”, “partiu aglomeração”, “morra quem morrer”. Da ironia satírica ao cinismo eleitoreiro, ocupantes de diferentes posições sociais, reproduziram e reproduzem discursos “docilizadores” daquele que tem se revelado como um dos fenômenos mais devastadores dos últimos tempos. A conversão do estranhamento à naturalização passa pela negação sistemática do estatuto da diferença das circunstâncias em que estamos para a manutenção do mesmo. Considerando o avanço da doença e as notícias da ineficiência dos governos na lida com o problema, a naturalização é o pior sintoma social da pandemia no momento em que estamos. Na cidade em que moro, dói de ver chalanas de turistas “festejando” o verão de 2021 como se não houvesse amanhã.

Outra forma de estranhamento entre nós aprofunda, amplia e multiplica questões. Até quando vamos conviver com isso tudo? Teremos vacina para todas e todos? Quando retornaremos a ocupar nossos lugares de convívio público em paz? Quando as nossas escolas voltam a funcionar? Como conciliar minha vida doméstica com minha vida pública? As questões não cessam, assim como o terrível incômodo com as escalas da morte e a brutalidade do negacionismo inscrito entre nossas famílias e amigos (como se as maldições dos tempos eleitorais não nos dessem trégua). A inquietação questionadora fortalece a indignação com o que vivemos no momento. Recolhidos em ilhas de distanciamento, à maneira de quem cuida de si e dos outros, quem encontra no estranhamento sentido para a prática de inconformismos produtivos, move-se no sentido da transformação coletiva.

Nos primeiros meses do ano de 2021 não li nem ouvi o termo pós pandemia. Posso estar louco, mouco ou pouco informado, tanto faz, pós pandemia é um termo ausente nos últimos dias. No fundo, mais por força da fé do que da minha limitada racionalidade instrumental, acredito que vamos sair dessa. Tenho muitas dúvidas quanto às dimensões sociais das transformações necessárias para termos um povo que respeite à vida na suas mais diferentes expressões no "continente brasileiro" pós pandemia.

            O Brasil é uma invenção genocida que nunca poupou esforços para naturalizar as violências das suas origens. Colocar o estranhamento a serviço da inquietação no momento é, a um só tempo: “manutenção da lucidez” e “ato de reexistência”. Prefiro o incômodo de todas as dúvidas que nos assombram, à calmaria da estupidez que conforma o avanço da morte. 

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