Para espantar pedagogias sem rosto, pedagogias cantadas (encantadas).

 

                                                                                 Foto de Denise Comerlato

“A gente pode estar com muita dificuldade com a luta. Quando a gente coloca o pé na terra, quando sente o gemido da terra, escuta o seu chamado, a gente sabe como vai seguir os nossos passos, porque estamos ouvindo. Ela está dando direção pra gente. Foi feito este trabalho nas nossas retomadas: o nosso escutar” (Mestra Mayá)

 

                A voz de Maria Muniz Andrade Ribeiro, Mestra Mayá, abriu a retomada das atividades presenciais da Licenciatura Intercultural Indígena do Instituto Federal da Bahia (IFBA), campus Porto Seguro, na manhã da última segunda feira – 23 de maio. A palavra falada e cantada da educadora Pataxó Hã hã hãe conduziu o repovoamento indígena e não indígena do auditório do IFBA, antes esvaziado pelos efeitos mais duros da pandemia. No transcurso do momento era lançado o livro “A Escola da Reconquista”, obra da educadora indígena organizada por Rosângela Pereira de Tugny.

                Àquela manhã, do outro lado do mundo (em Londres), estavam reunidos ministros da educação de vários países, no Fórum Mundial de Educação. Lá, mais ao norte, debulhavam-se pautas dos interesses hegemônicos globais na educação. Inovação, tecnologia e desenvolvimento sustentável ocupavam agendas políticas (e negociais) dos representantes de governos dos cinco continentes. Cá, no sul da Bahia, à entrada Nordeste do Brasil, aprendíamos com a pedagogia cantada e encantada de Mestra Mayá a espantar as “pedagogias sem rosto”, que assombram o nosso presente.

                Para quem conhece as cosmologias afro-brasileiras, segunda feira é dia de Exus, senhores e senhoras das encruzilhadas. Ali, no IFBA de Porto Seguro, estávamos em movimento coletivo ao modo de quem pede passagem para aprendizagens ancestrais, sob a condução da Mestra Mayá com os cantos das suas pedagogias das retomadas. Muito mais ao norte do mundo, no berço de uma das nações mais poderosas na condução do colonialismo clássico e do colonialismo global – para usar dois importantes conceitos de Pablo González Casanova – inventavam-se ‘pedagogias sem rosto’ para fortalecimento dos ‘mercados de trabalho’ no mundo pós pandemia.

                  Como participante do ato de lançamento do livro “A Escola da Reconquista”, presenciei aquela manhã de segunda feira como um momento de confronto entre as forças produzem “pedagogias coloniais globais” e “pedagogias contra coloniais locais”, aqui apresentadas como “pedagogias sem rosto” e “pedagogias cantadas (encantadas)”.

Para mim, as “pedagogias sem rosto” operam por conversão. Transformam a educação em prestação de serviços, presenças vivas em indicadores inanimados, currículos em oportunidades de negócios, educadores em gestores de aprendizagem e aprendizes em empreendedores de si. Do colonialismo clássico aos colonialismos internos, internacionais e transnacionais do nosso tempo, “pedagogias sem rosto” preservam vigências históricas dos regimes de dominação cultural.

As “pedagogias cantadas (encantadas)” operam por conversação.  Tocado pela potência do canto da Mestra Mayá vivi em profundidade a dimensão “sentipensante” de nossas ancestralidades ameríndias, conforme também nos ensina Orlando Fals Borda. O canto de Maria Muniz eleva os ciclos falados do ensinar-aprender à experiência dançante dos encontros ancestrais. Os passos da Educação nas Retomadas se fazem “trabalhando, caminhando, cantando e conversando” – conforme nos lembra a educadora indígena em sua obra.

Antes de chegar ao livro que hoje se lança para o mundo, Mestra Mayá atuou como educadora em 396 retomadas indígenas nos territórios do sul da Bahia. Ao longo de quatro décadas ocupou as mais diferentes posições dentro das escolas indígenas. Como professora foi também merendeira, porteira, zeladora, comunicadora, gestora, mediadora cultural, agente comunitária, produtora de material didático e pensadora. Refere-se ao seu livro como um “resumo” da sua vida. Ouvi-la àquela manhã de segunda feira, nos encheu de coragem para o que nos espreita nas indeterminações dos nossos dias.

Li e reli “A Escola da Reconquista” nos últimos meses. Considero-o um dos maiores (e melhores) acontecimentos da produção intelectual rebelde dos nossos tempos. Para mim, uma obra que tem o valor histórico de outras três importantes obras produzidas no século passado. “Educação não é Privilégio”(1957) - dois manifestos em defesa da educação pública de Anísio Teixeira. “Quarto de Despejo” (1960) – inventário de saberes vivenciais de uma mulher negra e favelada de Carolina Maria de Jesus. Pedagogia do Oprimido (1968) – cartografia pedagógica da libertação de Paulo Freire. Todas essas obras foram escritas no intervalo histórico entre ascensão e declínio da democracia na passagem entre os anos de 1950 e 1960. A obra de Mestra Mayá inspira rebeldias pedagógicas para enfrentarmos no presente o “medo das lutas” ao modo de quem não se aparta dos seus ancestrais para vencer o “tempo dos colonizadores”.

Escutá-la no ato de lançamento do livro nos conduziu a outra dimensão com a palavra educadora. Canto após canto, encontrávamos na voz da nossa Mestra Mayá, palavras e pausas que nos educavam para espantar “pedagogias sem rosto”. Desde aquela manhã, um trecho da primeira canção não sai do meu corpo: “quem pratica a igualdade não precisa de utopia”.

 

(Para quem deseja conhecer mais a vida e o pensamento da Mestra Mayá, O livro A Escola da Reconquista pode ser adquirido no site da Editora Teia dos Povos)...

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