Comunidades-escola

 



           A realização do I Fórum Comunitário das populações atingidas pelas enchentes em Santa Cruz Cabrália redefiniu as paisagens da Escola Municipal Antonio Sambrano Guerra.  As comunidades na escola articularam a constituição de comunidades-escola, múltiplas em suas identidades originárias e singulares na territorialização escolar. Corpo social multifacetado movido por aprendizagens enraizadas nas experiências com os desastres ambientais. A escola situa-se no bairro Capitão Luiz de Matos, mais conhecido como Sapolândia, um dos locais mais afetados pelos efeitos das catástrofes de 21 de abril de 2023.

O movimento comunitário constituído no enfrentamento da tragédia ambiental alterou os modos de ver, dizer e viver a escola. Ao longo de todo o dia 20 de maio de 2023, as mais de 290 (duzentos e noventa) presenças que transitaram no Fórum ultrapassaram barreiras visíveis e invisíveis que separam a escola da comunidade. Eram 10 (dez) comunidades ao todo. O evento viabilizou a realimentação dos laços sociais de pertencimento cidadão, a partir da escuta responsiva das experiências das populações locais com os eventos climáticos extremos, assim como na concentração de esforços propositivos da reparação dos danos e de ações preventivas para ocorrências futuras.

Ali, naquela escola, as pessoas ultrapassavam distâncias que separam suas comunidades umas das outras. Coexistiam com suas diferenças ideológicas, sociais, étnico-raciais, de gênero, etárias, religiosas e outras tantas. Protagonizavam um mutirão educacional no compartilhamento de suas vivências com a catástrofe, transformando suas leituras de mundo em matéria prima de suas leituras da palavra – para lembrar Paulo Freire. Ali, naquelas comunidades-escola as populações atingidas pelas enchentes em Santa Cruz Cabrália praticavam o repovoamento dos espaços públicos no exercício intensivo de suas políticas de memórias.

As enchentes que acontecem no ciclo pandêmico da COVID - desde 2020 - tornaram mais complexas as interfaces entre desequilíbrios ambientais e desigualdades sociais na cidade, no campo e nas aldeias indígenas e comunidades quilombolas da Bahia. Também impuseram a inúmeros espaços públicos a quebra de barreiras de isolamento social, para atender a famílias desabrigadas e desalojadas pela ocorrência de desastres ambientais no contexto da crise sanitária global. Pouco antes do decreto oficial do fim da pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS), no dia 05 de maio de 2023, a própria Escola Antônio Sambrano Guerra abria as suas portas para atender a famílias desabrigadas pelas enchentes.

O Fórum Comunitário reinstaurou por inversão as ambiências escolares no fazer educativo das comunidades. Àquele momento, era a escola aprendendo com as comunidades o trabalho de reconstrução da vida cidadã.

Todas as narrativas sobre os efeitos das enchentes na vida da comunidade e as proposições de ações reparadoras e preventivas conferiram densidade de conteúdo e reflexão nos trabalhos do Fórum. Destaco duas passagens de grande intensidade dos afetos das comunidades-escola nos modos de fazer em que estávamos enredados.

Adriano Souza de Jesus, presidente da Associação de Pescadores do Guaiú, fez o seu relato no início dos trabalhos do Fórum. Após apresentar os desafios que tem encontrado para lidar com os efeitos de temporais e enchentes no distrito em que mora, falou de suas memórias de pertencimento à escola. O jovem trabalhador e líder comunitário lembrou que ainda criança, na condição de estudante do Ensino Fundamental no Antonio Sambrano Guerra, participara de mutirões de limpeza daquela escola depois da ocorrência de enchentes. Com ele reconstruímos memórias dos engajamentos sociais que fazem a história cotidiana das comunidades na escola em outros contextos de tragédias ambientais.

Dona Maria, uma moradora idosa do Bairro Capitão Luiz de Matos, pediu a palavra logo após o encerramento da segunda mesa da manhã do dia 20, quando especialistas de várias áreas do conhecimento colaboravam com o debate. Nos poucos minutos do seu tocante depoimento: falou da sua emoção de estar ali, destacou os problemas de saúde e os dramas familiares provocados pelas enchentes. A sua breve fala nos abriu um “mapa” falado da situação vivida pelas famílias mais vulneráveis antes, durante e depois das enchentes. Dona Maria correlacionou as transições de moradias forçadas pelas enchentes dos anos anteriores. A mulher relatou que foi deslocada de uma área de risco para outra. Foi obrigada a sair da Rua Caminho da Fonte pelas enchentes de anos anteriores, para morar na Casa 1 das “casinhas da Sapolândia”. A sua atual morada foi tomada pela lama e acirrou uma disputa familiar entre herdeiros. No meio do seu relato, afirmou com muita emoção: “eu não tenho merecimento para passar por isso”.

  Entre o depoimento do jovem pescador egresso da escola e da anciã do bairro Capitão Luiz de Matos, as comunidades-escola ampliaram as potências dos sentidos daquele encontro. Pessoas pertencentes a outros lugares, outras gerações e portadoras de múltiplas identidades inscreviam suas biografias pessoais no evento – assim como inscreviam o evento e a escola em suas histórias de vida. Ao final do dia escreveram, leram e aprovaram em assembleia o documento que apresenta as proposições das comunidades locais para a efetivação de ações reparadoras e preventivas, que assegurem o cuidado com a vida na cidade, no campo e nas aldeias indígenas do município.

A Carta das populações atingidas pelas enchentes do ano de 2023 em Santa Cruz Cabrália é um documento-síntese do movimento educador deflagrado pelas comunidades durante e depois dos eventos climáticos extremos de 21 de abril. É também o testemunho epistolar do acontecer de comunidades-escola, fluxo de repovoamento dos espaços públicos na reconstrução de laços sociais que fortalecem os esforços de superação dos traumas gerados pelas tragédias ambientais, agravantes das desigualdades sociais nos contextos comunitários locais.  


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